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Voltemos, porém, à nossa análise interrompida. Provamos que uma língua internacional mais cedo ou mais tarde será introduzida no uso; mas resta uma questão: quando e de que modo virá ela? Pode ser que ela venha somente daqui a séculos ou até milênios. Para isso será indispensavelmente necessário um acordo dos governos de todos os países? Afim de dar uma resposta mais ou menos satisfatória a estas questões, temos de analisar antes outra questão, isto é: "Pode-se prever qual será a língua internacional?" Entre as primeiras e a última destas perguntas existe a estreita ligação seguinte: se não se puder prever que língua será tornada internacional, e se diversas línguas têm para isso mais ou menos as mesmas possibilidades, então se tem de esperar que os governos de todos, ou pelo menos dos principais países, resolvam a organizar um congresso afim de deliberar sobre o problema da língua internacional. Quem conhece a dificuldade com que os governos tomam deliberações sobre cousa nova, compreenderá que muitos anos ainda se passarão antes que os governos achem suficientemente madura a questão duma língua internacional, para intervirem, e depois talvez se passem ainda muitos anos no trabalho de diversas comissões e de diplomatas, antes que a cousa seja decidida. Nesse caso as pessoas e as sociedades particulares nada poderiam fazer; só poderiam insistir constantemente com os governos, mas não poderiam resolver a questão por si mesmas, sem intervenção dos governos. A solução da questão assim estaria muitíssimo afastada. Cousa inteiramente diversa seria, se ficasse demonstrado que se pode prever com plena precisão e absoluta certeza qual a língua que será internacional: então já não se teria de esperar talvez uma infinidade de anos, pois que qualquer sociedade, qualquer pessoa isolada, sob sua própria direção poderia trabalhar para a difusão da língua; o número de adeptos desta língua cresceria de hora em hora, sua literatura se enriqueceria rapidamente, os congressos internacionais poderiam desde já começar a empregá-los para a intercompreensão dos seus membros, e em pouco tempo a língua se tornaria tão forte no mundo todo, que aos governos só restaria sancionar um fato consumado. Podemos prever que língua será internacional? Felizmente podemos responder a esta questão de modo absolutamente positivo: "Sim, podemos prever que língua será internacional, podemos prevê-lo com inteira precisão e certeza, sem sombra alguma de dúvida."

Afim de convencer disso os nossos ouvintes, pedimos-lhes imaginar que se esteja efetuando um congresso dos representantes de diversos países, e examinaremos que língua poderiam eles escolher. Não nos será difícil provar, que só existe uma única língua que eles pudessem escolher, e que a escolha de qualquer outra lhes seria impossível, mesmo que o quisessem; e que, se contra toda expectativa e a despeito dos argumentos de sã prudência escolhessem alguma outra língua, contra tal decisão protestaria a própria vida, e sua escolha ficaria sendo mera letra morta.

Assim imaginemos que os representantes de diversos países se tenham reunido e que dêem passos para a escolha de uma língua internacional. Diante deles estaria o seguinte:

escolher alguma das línguas vivas existentes;
escolher uma das línguas mortas (por exemplo o latim, o grego, o hebraico);
escolher uma das línguas artificiais existentes;
ou nomear uma comissão que se encarregaria de criar uma língua inteiramente nova, ainda não existente.

Afim de que os nossos ouvintes possam em pensamento participar dos trabalhos dos encarregados da escolha, devemos iniciá-los um pouco no caráter das ditas categorias de línguas. O caráter das línguas vivas e mortas é mais ou menos conhecido dos ouvintes, e por isso só diremos algumas palavras sobre as línguas artificiais, que para a maioria dos nossos ouvintes provavelmente constituem uma verdadeira "terra incógnita".

De que modo conceberam os homens a idéia de uma língua artificial, como se desenvolveu esta idéia percorrendo vários estádios, começando das mais imperfeitas pasigrafias até o mais perfeito tipo de língua completa e rica, que multidão imensa de tentativas foi feita em tal sentido, que imensidade de trabalho foi sacrificado a essa idéia durante os últimos séculos de nada disso falaremos, pois que para nos ouvir sobre tudo isso os senhores não teriam tempo e paciência suficientes. Diremos algo somente sobre as qualidades particulares das línguas artificiais, das quais teremos naturalmente diante dos olhos não as diversas tentativas anteriores que faliram por lhes faltarem as qualidades essenciais por nós analisadas, mas a forma mais perfeita de língua internacional existente em nosso tempo.

Além de completa neutralidade com respeito às nações, uma língua artificial distingue-se pelas seguintes qualidades:

1o) É maravilhosa e incrivelmente fácil de se aprender. Sem exagero pode dizer-se que é pelo menos cinqüenta vezes mais fácil do que qualquer língua natural. Quem não conhece uma língua artificial, não pode crer até que ponto chega sua facilidade. O grande escritor e filósofo Leão Tolstoi, de quem certamente ninguém neste mundo teria coragem de suspeitar que estivese fazendo reclame da língua internacional, disse da língua Esperanto o seguinte: "A facilidade de seu aprendizado é tal, que, havendo recebido uma gramática de Esperanto, um dicionário e artigos escritos nessa língua, depois de me ocupar com ela durante duas horas podia, senão escrever, pelo menos ler nessa língua. Em todo caso, o sacrifício que teria de fazer cada homem do nosso mundo europeu, dedicando algum tempo a aprender esta língua, é tão insignificante, e os resultados que viriam, se pelo menos os europeus e americanos aceitassem esta língua, seriam tão grandes, que não se deve deixar de fazer esta prova." Compreendam, meus senhores, o que significa isto: "depois de ocupar nada mais de duas horas!" E desse mesmo modo se expressaram sobre a língua Esperanto todos os homens honestos e sem preconceitos que, em vez de filosofar cegamente, se deram ao pequeno trabalho de conhecê-la de fato. É verdade que os homens instruídos podem aprender o Esperanto com muito mais rapidez do que os sem instrução, mas também estes o aprendem com maravilhosa facilidade, pois que para aprender o Esperanto não se exigem do aluno conhecimentos prévios. Entre os esperantistas encontram-se muitas pessoas de tão pouca instrução, que mesmo em sua própria língua materna escrevem muitíssimo mal, com muitos erros; e contudo em Esperanto escrevem absolutamente certo, - havendo aprendido a língua em poucas semanas, ao passo que o estudo de uma língua natural para tais pessoas deveria tomar-lhes pelo menos quatro a cinco anos.

Quando no ano de 1895 chegaram a Odessa estudantes suecos que só sabiam sueco e Esperanto, um jornalista, que quis conversar com eles, de manhã pela primeira vez na vida tomou dum manual de Esperanto e à tarde desse mesmo dia já podia falar suficientemente bem com os suecos.

De onde vem essa incrível facilidade da língua internacional?

Todas as línguas naturais formaram-se às cegas, pela reunião de circunstâncias as mais diversas e puramente ocasionais; nenhuma lógica, nenhum plano preestabelecido presidiu à sua formação, mas simplesmente o uso. Tal palavra é de uso empregar-se assim, e por isso assim temos de empregá-la; tal palavra de outro modo, e de modo tal temos de empregá-la. Já por isso poderíamos prever que um sistema de sons para expressar os pensamentos, criado pela inteligência do homem conscientemente e seguindo as leis severamente definidas da lógica, deveria ser muitas, muitíssimas vezes mais fácil do que tal sistema de sons formados por si mesmos ao acaso e inconscientemente. Não nos é possível analisar aqui toda essa marcha dos pensamentos em que tiveram de se debater os autores de línguas artificiais, nem mostrar minuciosamente todas as imensas simplificações que possui uma língua artificial em comparação com as naturais, porque isso reclamaria um massudo tratado; daremos somente alguns exemplos. Assim, em quase todas as línguas cada substantivo pertence a um gênero gramatical; na língua alemã a palavra "cabeça" é masculina, em francês é feminina, e em latim é neutra. Existe nisso o mínimo senso ou finalidade? Entretanto, que imensa dificuldade representa para o estudante guardar na memória o gênero de cada substantivo! O estudante tem de se exercitar, e exercitar-se, e exercitar-se ainda, até chegar à perfeição, de sorte a não confundir mais e não dizer, por exemplo, "le fin" em vez de "la fin", ou "das Strick" em vez de "der Strick"! Em uma língua artificial esse gênero gramatical dos substantivos é totalmente excluído, porque está verificado não ter ele a mínima finalidade. Aí têm os senhores um exemplo, de como pelo meio mais simples se consegue enorme simplificação da língua.

Nas línguas naturais existem as mais complicadas e confusas declinações e conjugações com enorme quantidade de formas diversas, não somente para todas as declinações e conjugações, mas ainda em cada uma delas uma série de formas; por exemplo, nas conjugações os senhores têm não só para cada tempo e modo séries inteiras de formas, senão ainda em cada um desses tempos e modos formas distintas para cada pessoa e número. Obtêm-se enormes tabelas gramaticais que se devem aprender e conservar na memória; mas isto é ainda só o princípio: a isso temos de adicionar uma multidão de conjugações e declinações irregulares, cada uma com uma série de formas, e tudo isso se tem não somente de aprender e conservar na memória, mas ainda constantemente de recordar que palavra se modifica segundo tal ou qual tabela regular ou irregular de declinação ou conjugação. A apropriação de tudo isso requer um trabalho infernal, um tempo imenso e exercícios contínuos. Entretanto uma língua artificial, em lugar deste caos imenso, que absorve anos de trabalho paciente, nos dá só e unicamente seis partículas "i, as, is, os, us, u", que se podem perfeitamente aprender em alguns minutos para nunca mais esquecer nem confundir. Perguntarão os senhores com pasmo: "como é possível isso?" Mui simplesmente: o Esperanto lhes diz que declinações são absolutamente desnecessárias, pois que se podem substituir muito bem pelas preposições que de qualquer sorte teriam de ser empregadas, e que nas conjugações não somente basta uma tabela para todos os verbos, mas ainda que para essa tabela bastam (além dos particípios, que apresentam formas à parte) somente seis terminações: para os tempos presente, passado e futuro, e para os modos indefinido, condicional e imperativo. Talvez os senhores no primeiro momento suponham que com esta pequeníssima tabela de conjugações a língua perca sua flexibilidade. Absolutamente não; tomem conhecimento da língua artificial e verão que sua conjugação exprime todas as nuances do pensamento incomparavelmente melhor e mais nitidamente do que as mais complicadas e confusas tabelas das línguas naturais; porque a língua artificial eliminou não o que é necessário à linguagem, mas só o lastro absolutamente supérfluo, inteiramente inútil. Com efeito para que precisaríamos de uma série particular de terminações para cada pessoa e número, e em cada tempo e modo nova série dessas terminações, se essas terminações são de todo supérfluas, uma vez que o pronome anteposto ao verbo já mostra com inteira precisão a pessoa e o número?

A ortografia da maioria das línguas (e muito mais particularmente nas línguas que têm maiores probabilidades de ser escolhidas como internacionais) representa um verdadeiro suplício para o aprendiz: em uma palavra tal letra é pronunciada, em outra não é pronunciada ou o é de tal outro modo; em uma palavra tal som é representado de uma forma, em outra palavra já o é de outra forma... Anos inteiros um francês ou inglês tem de aprender para escrever regularmente em sua própria língua materna! Mudar radicalmente essa ortografia seria de todo impossível, porque uma quantidade imensa de palavras que só se diferençam de outras por nuances de pronúncia quase inapreciáveis, ou mesmo não o fazem de modo algum, se tornariam na escrita absolutamente indistinguíveis. A língua artificial deu a cada letra uma pronúncia clara, rigorosamente definida e sempre a mesma; graças a isso a questão ortográfica absolutamente não existe na língua artificial: depois de um quarto de hora de estudo de uma língua artificial (isto é, o simples conhecimento do alfabeto) pode-se tomar nela um ditado, enquanto em uma língua natural isso só se consegue após anos de trabalho difícil e enfadonho.

Já por estes poucos exemplos, que acabamos de dar, os senhores podem ter uma idéia da imensa facilidade que a intervenção da arte consciente proporciona à língua. Claro que poderíamos citar uma infinidade de outros exemplos, porque a cada passo se encontram nas línguas naturais enormes dificuldades e confusões que em uma língua artificial são abolidas como carga inútil, ou ficam reduzidas a uma ou duas regrinhas ou partículas, sem o mínimo prejuízo para a flexibilidade, riqueza e precisão da língua. Contudo não falaremos nisso, e só diremos que a gramática completa do Esperanto consiste em dezeseis regras breves, que qualquer pessoa pode aprender perfeitamente em meia hora! Depois de meia hora de estudo de Esperanto, o estudante já o sabe de tal sorte que só lhe resta o trabalho simples e fácil de adquirir vocabulário. Para compreender e avaliar o significado disso, imagine-se que os senhores tenham cometido o aprendizado de uma língua natural e que após alguns anos de trabalho paciente hajam chegado a possuir a construção da língua com perfeição, estando certos de que jamais poderão cometer na língua nenhum erro de ortografia ou gramática e de agora em diante só necessitando aprender o máximo de vocabulário possível: os senhores já se sentirão felizes e dirão que a parte mais difícil e enfadonha do trabalho está terminada... Não é verdade? No Esperanto os senhores teriam alcançado realmente esse resultado depois de meia hora de trabalho!

Portanto, mesmo que o Esperanto só tivesse esta vantagem, a que nos referimos acima, isto é, imensa facilidade e regularidade da gramática e da ortografia, já deveríamos dizer que ele é muitas, muitíssimas vezes mais fácil do que qualquer língua natural. Mas não termina aí a facilidade do Esperanto. Ao chegar ao ponto em que só precisamos de aprender vocábulos, mesmo nisso encontraremos em Esperanto ainda grandes facilidades. Assim, por exemplo, a própria regularidade da língua proporciona grande economia no número de palavras a aprender; pois que, conhecendo a forma do substantivo, já se sabe, sem necessitar novo esforço, a forma do adjetivo, do advérbio, do verbo, etc. ao passo que em cada língua natural muitas expressões têm para cada parte da oração uma palavra diferente (exemplo: falar, oral, verbalmente). Possuindo pleno e ilimitado direito de unir qualquer palavra a qualquer preposição ou com qualquer outra palavra , fica-se livre do estudo de muitas palavras que nas línguas naturais possuem radicais especiais só por não ser permitida tal ou qual composição de palavras. Mas, além destas vantagens naturais de formação de palavras que possui o Esperanto, nele se encontram também processos especiais, por assim dizer, meios artificiais que proporcionam grande economia no aprendizado do vocabulário. Por exemplo, os sufixos e prefixos, dos quais citaremos somente alguns, assim: o prefixo mal dá a cada palavra o sentido diretamente oposto (bona bom, malbona mau), portanto, sabendo as palavras "bom, mole, quente, largo, acima, amar, estimar,etc. (em Esperanto: bona, mola, varma, largxa, supra, ami, estimi, etc.)" os senhores mesmos podem formar as palavras "mau, duro, frio, estreito, abaixo, odiar, desestimar, etc. (em Esperanto: malbona, malmola malvarma, mallargxa, malsupra, malami, malestimi, etc.)".

O sufixo - in- indica feminino (patro pai, patrino mãe); portanto conhecendo as palavras "boi, cavalo, cão, carneiro, galo (em Esperanto: bovo, cxevalo, hundo, sxafo, koko)" estamos livres do trabalho de aprender os nomes "vaca, égua, cadela, ovelha, galinha (bovino, cxevalino, hundino, sxafino, kokino)". O sufixo -il- significa instrumento (trancxi cortar, trancxilo faca), logo conhecendo os verbos "cortar, serrar, pentear, atirar, arar (trancxi, segi, kombi, pafi, plugi)", formamos os nomes dos instrumentos: "faca, serrote, pente, espingarda, arado (trancxilo, segilo, kombilo, pafilo, plugilo)", etc. Destes elementozinhos que reduzem imensamente o dicionário existem ainda muitos outros em Esperanto.

Recordando tudo o que acabamos de dizer sobre a construção de uma língua artificial, os senhores certamente concordarão que ao dizer que uma língua artificial é pelo menos 50 vezes mais fácil do que uma natural, não estamos exagerando. Queiram notar na memória a imensa facilidade de uma língua artificial, porque depois voltaremos a este ponto.

2o) A segunda qualidade que distingue uma língua artificial é a sua perfeição, que consiste em uma precisão matemática, flexibilidade e riqueza ilimitada. Que uma língua artificial viria a possuir esta qualidade, já o haviam predito mesmo antes do aparecimento da primeira língua artificial, todas as eminentes cabeças que cogitaram dessa idéia importantíssima para a humanidade mais seriamente do que os diversos atuais Jupíteres para os quais o mais superficial conhecimento da essência das línguas artificiais lhes rebaixaria a honra e dignidade. Poderíamos citar espíritos luminosos como Bacon, Leibnitz, Pascal, de Brosses, Condillac, Descartes, Voltaire, Diderot, Volney, Ampère, Max Mueller, etc., porém, encaramos citações apenas como arma de sofistas pseudo-instruídos; por isso, sem fanfarronar com citações, procuraremos provar tudo por meio unicamente da lógica. Que uma língua artificial não somente pode, como deve ser mais perfeita do que as naturais, compreendê-lo-á qualquer pessoa se considerar o seguinte: Toda língua natural foi construída pelo processo de repetir alguém o que ouviu de outrem; nenhuma lógica, nenhuma decisão consciente da inteligência humana teve nisso função alguma. Toda expressão, que os senhores já ouviram muitas vezes, podem empregar, e toda expressão que não ouviram, lhes é vedado usar. Por isso em cada língua natural se dá a cada passo o seguinte fato: surge-nos no cérebro uma concepção, mas... não dispomos duma palavra para expressá-la; temos assim de nos valer de longa e incômoda descrição para comunicarmos o que nos apareceu no cérebro como uma noção, como uma palavra única do espírito. Por exemplo: como ordinariamente são mulheres que se ocupam de lavar roupa, em todas as línguas existe palavra para a idéia de "lavadeira"; mas se um homem se ocupar de lavar roupa, em muitíssimas línguas não temos palavra para nomear o homem que lava roupas, porque nunca ouvimos tal expressão. Até agora o tratamento dos doentes esteve a cargo de homens (médicos); quando começaram a aparecer doutoras em medicina, ou mulheres com outras posições científicas, na maioria da línguas não se encontrava palavra para nomeá-las! Temos de recorrer a várias palavras para expressar o título, e quando deste se precisem formar adjetivos, verbos, etc., isso é de todo impossível!

Em toda língua os senhores encontrarão muitos substantivos que não têm este ou aquele gênero, este ou aquele caso, esta ou aquela forma de derivação; adjetivos que não possuem este ou aquele grau de comparação, esta ou aquela forma; verbos que não possuem tal tempo, modo, pessoa, etc. De certo substantivo não se pode formar adjetivo, de tal verbo não se pode fazer substantivo, etc. Porque repetimos, toda língua natural é formada não consoante a lógica senão apenas pelo cego "assim se diz", ou "assim não se diz". Portanto, todo conceito que nos aparece no cérebro, mas para o qual ainda não ouvimos expressão, ordinariamente não podemos traduzir por palavra, devendo recorrer a descrições. Mas em uma língua artificial, conscientemente fundada sobre as leis severas do pensamento que não admite exceção nem arbítrio de qualquer sorte, nada de semelhante pode ocorrer. Frases, como "tal palavra não tem tais formas ou não permite tais ligações de idéias", em uma língua artificial não são absolutamente possíveis.

Suponhamos, por exemplo, que amanhã um homem adquira a possibilidade de dar filhos à luz ou de amamentá-los, - e para ele na língua existirá logo pronta uma palavra, porque em uma língua artificial não é possível a existência de uma palavra para um sexo e inexistência para outro.

Suponhamos que amanhã alguém escolha uma nova profissão, mesmo a mais extravagante, como, por exemplo, trabalhar com o ar, - para tal profissão existirá logo na língua artificial a palavra que a expresse, porque o sufixo para "profissão" nos dá a possibilidade de expimir qualquer profissão que o nosso cérebro possa conceber.

Além disso, não esqueçamos que o aperfeiçoamento duma língua artificial tem possibilidades infinitas, porque toda boa regra, boa forma, boa expressão, que existam em qualquer outra língua, uma língua artificial tem pleno direito de incorporar ao seu acervo; toda falha que se note ela pode em pleno direito corrigir e mudar, ao passo que de uma língua natural nada disso se poderia dizer, porque então ela se transformaria em artificial.

Além das duas imensas vantagens que acabamos de analisar em uma língua artificial (extraordinária facilidade e perfeição), outras ainda existem, das quais não falaremos. Passemos diretamente aos defeitos de uma língua artificial. Quem esteja embora pouco familiarizado com uma língua artificial e tenha a coragem necessária de crer no que , sem se limitar a repetir de olhos fechados frases alheias, só poderá chegar à conclusão de que uma língua artificial não possui nenhum dos defeitos das naturais. Cada um dos senhores já teve ocasião de ouvir inúmeros ataques a uma língua artificial; todos esses ataques podemos rebater com a mesma resposta: todos eles saem da boca de pessoas que nenhum conhecimento têm, nem mesmo de vista, de uma língua artificial, - nunca viram nem pesquisaram, nem mesmo refletiram logicamente sobre sua essência, e que em vez de pensar no que dizem, preferem lançar aos quatro ventos frases retumbantes e em moda, mas sem pé nem cabeça. Se fizessem ainda que pequeno conhecimento com uma língua artificial, notariam que essas frases são inteiramente falsas. Se mesmo sem conhecer a língua, refletissem com lógica sobre ela, perceberiam que suas frases não têm o mínimo fundamento. Se alguém desejar fazer-nos crer que na cidade vizinha todas as casas são construídas de papel e que os homens lá não têm mãos nem pés, esse alguém poderá impor essa convicção às multidões que aceitam piedosamente toda palavra pronunciada em tom autoritário de sábio; mas um homem prudente receberá tais palavras com muita reserva; porque em seu critério não encontra fundamentos aceitáveis para elas; e se lhe ficar alguma dúvida, simplesmente irá à cidade vizinha e olhará, verificando que todas as frases que lhe foram ditas são da mais absoluta insensatez. Assim também se dá com uma língua artificial: em vez de repetir frases cegamente, os senhores devem apenas refletir sobre a essência dessas frases, e compreenderão logo que elas não têm o mínimo fundamento; e se a reflexão teórica lhes for insuficiente, olhem, lancem um olhar sobre um manual da língua artificial, travem conhecimento com a construção dessa língua, aprofundem um pouco o conhecimento da sua literatura já muito rica e variada, façam uma tentativa, examinem os fatos que a cada passo se apresentam diante dos seus olhos, - e então compreenderão a enorme falta de senso de todas essas frases que os senhores ouvem contra a língua artificial. Os senhores ouvem dizer, por exemplo, a frase: "uma língua não pode ser criada em um gabinete, assim como um ser vivo não pode surgir da retorta de um químico." Essa frase soa tão bem, tão "sensatamente", que para a maioria imensa dos homens não permite dúvida alguma de que língua artificial seja infantilidade. Se, porém, essa grande maioria de homens tivessem suficiente capacidade crítica para formular esta simples pergunta "por que?" - então a frase altissonante de uma vez por todas perderia a seus olhos todo e qualquer sentido, porque verificaria que nenhuma resposta lógica existe, que essa frase é meramente uma coleção de palavras bem soantes, mas sem a mínima base lógica. Absolutamente a mesma frase poderia empregar-se também contra o alfabeto artificial, que a humanidade já usa há tanto tempo e com tanto proveito, e contra a viagem por meio de trens a vapor ou bicicleta, e contra toda a nossa civilização artificial!

Essa e outras frases semelhantes são as mesmas que os homens repetem obstinadamente toda a vez que aparece uma idéia... ó frase, frase, frase, quando deixarás de dominar os espíritos dos homens!

Os senhores ouviram dizer que uma língua artificial é impossível, que por meio dela os homens não se compreenderão reciprocamente, e cada povo a empregará de modo diferente que nela não se pode exprimir cousa alguma, etc., etc. Se atentarmos em que, com a mínima dose de honestidade e boa vontade, qualquer pessoa pode praticamente verificar por si mesma a falsidade de tudo isso que dizem os paroleiros em tom de autoridade - os quais por amor aos aplausos da multidão preferem fechar os olhos e lançar essas frases sobre a idéia, somente porque ela é ainda nova e não está em moda, - mas positivamente provocam indignação. Em vez de deitar frases às cegas, andem e olhem: verão que todas as suas palavras são simples mentira sem cerimônia: verão, efetivamente que uma língua artificial de há muito existe, que indivíduos das mais diversas nações já de há muito a empregam com o maior proveito; que eles se compreendem otimamente e com a máxima precisão, tanto escrevendo quanto falando; que homens de todas as nações a empregam absolutamente do mesmo modo; sua literatura já muito rica e variada, mostrará a evidência que todas as mais delicadas nuances do pensamento e do sentimento humano nela se podem exprimir da melhor maneira... Em vez de papaguear uma palurdice teórica, vão observar os fatos, fatos fáceis de controlar, indubitáveis, inegáveis, - e então nenhuma dúvida restará de que nenhum motivo existe contra a introdução de uma língua artificial no uso corrente.

Voltemos agora ao assunto iniciado no princípio deste capítulo, isto é, imaginemos reunido um congresso de representantes de todos os países mais importantes, para escolher uma língua internacional. Vejamos que língua eles podem escolher. Não será difícil demonstrar que podemos prever essa escolha não somente com muita probabilidade, mas até com plena certeza e precisão.

De quanto acima dissemos a propósito das imensas vantagens das línguas artificiais sobre as naturais, espontaneamente decorreria que só pode ser escolhida uma língua artificial. Suponhamos, contudo, por um momento que o congresso todo se componha dos mais obstinados rotineiros e inimigos de qualquer cousa nova e que lhes venha à cabeça a idéia de escolher alguma das línguas naturais, embora sob todos os aspectos menos conveniente do que uma artificial. Se eles desejarem escolher uma língua viva de alguma das nações existentes, como grande obstáculo surgirá não só a inveja recíproca dos povos, mas igualmente o receio muito natural de cada nação de vir a perder sua própria existência: porque é cousa bem compreensível que o povo, cuja língua fosse escolhida como internacional, em pouco tempo haveria de alcançar tal supremacia sobre todos os outros povos, que os oprimiria e tragaria.

Mas suponhamos que os deputados ao congresso não prestem atenção alguma a isso, ou que, afim de evitar a inveja e a absorção de todos os povos por um, escolham uma língua morta, por exemplo o latim, - o que sucederá? Será muito simples predizer que a decisão do congresso ficará sendo letra morta e nunca será realizada. Toda língua natural, seja viva, seja morta, é tão terrivelmente difícil, que seu conhecimento um pouco aprofundado só é possível a pessoas que disponham de muito tempo livre e de grandes recursos econômicos. Não teríamos, portanto, uma língua internacional na verdadeira acepção da palavra, mas uma língua internacional apenas para as classes mais elevadas da sociedade. Que seria assim e não de outra maneira, mostra-nos não só a lógica, senão também, há muito tempo e de modo evidente, a própria vida: com efeito, a língua latina já de há muito escolhida como internacional por todos os governos, e já de longo tempo em todos os ginásios de todos os países, por ordem dos governos, a mocidade é obrigada a dedicar uma série de anos ao estudo desta língua; entretanto existirão muitos homens que saibam realmente o latim? A resolução do congresso, portanto, não nos daria nada de novo, mas seria simplesmente a repetição infrutífera, inútil, da decisão que de longo tempo já foi tomada e posta em prática sem resultado algum.

Em nosso tempo nenhuma decisão de um congresso, embora o mais autorizado poderia dar à língua latina a força que ela já teve nos séculos da idade média. Naquele tempo ela não só era internacional, como tinha o apoio unânime e absoluto de todos os governos, da sociedade toda, da igreja onipotente e até da vida mesma, porque então representava o fundamento de toda a ciência e de todo o saber; era-lhe consagrada a maior parte da vida; repelia em seu benefício todas as línguas pátrias, era aprendida e manejada obrigatoriamente, mesmo porque os homens instruídos de então não possuíam elementos para se exprimir em suas línguas maternas; apesar de tudo isso a língua não somente caiu, mas ainda no tempo de esplendor ela era propriedade exclusiva das classes privilegiadas da sociedade! Pelo contrário, se se escolhesse uma língua artificial, ao cabo de alguns meses toda a gente poderia sabê-la a fundo, todas as esferas da sociedade humana, não só os intelectuais e ricos, mas até os pobres e incultos aldeões.

Os senhores vêem, pois, que o futuro congresso absolutamente não poderá deixar de escolher uma língua artificial. Preferir uma língua natural, quando temos a possibilidade de escolher uma artificial que possui infinitas vantagens sobre aquelas, seria cousa tão insensata como, por exemplo, enviar um objeto de Paris a Peterburgo (hoje Leningrado, Trad.) em lombo de cavalo, quando já podemos fazê-lo por estrada de ferro. Nenhum congresso poderá fazer tal escolha; se, porém, supusermos que ele seja tão irrefletido e tão cego pelos hábitos rotineiros, que faça tão absurda eleição, pela força das circunstâncias esta ficará sempre letra morta, e na prática a questão duma língua internacional permanecerá sem solução até que mais cedo ou mais tarde se efetui um novo congresso e escolha uma língua artificial.

Assim, pedimos aos senhores notarem bem na memória esta conclusão, à qual chegamos:

A língua internacional das gerações futuras será única e inevitavelmente uma língua artificial.

 

 

Revisado: 19 de Abril de 1998.
Eduardo Andrade Coelho
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