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Todas as idéias destinadas a representar grande papel na história da humanidade têm sempre igual sorte. Quando surgem, seus contemporâneos as encontram não somente com obstinada desconfiança, mas até com inexplicável hostilidade. Os pioneiros de tais idéias têm muito que lutar e muito que sofrer; são encarados como loucos e infantilmente insensatos, ou até como seres nocivos. Enquanto os homens que se ocupam das cousas mais absurdas e sem finalidade alguma, - desde que estejam em moda e de acordo com as idéias rotineiras das multidões, - gozam não somente todos os bens da vida, mas também o honroso título de "instruídos" ou de "beneméritos", os pioneiros das idéias novas nada encontram além de zombarias e de ataques. Qualquer bobo de pouquíssima instrução fita-os muito de alto e lhes declara solenemente que se estão ocupando de tolices. O menos classificado cronista dos diários escreve sobre eles artigos e notas "espirituosas", sem se dar ao trabalho de se informar nem mesmo superficialmente do assunto em discussão. E o público, qual rebanho que acompanha sempre os que mais gritam, ri às gargalhadas, e não medita por um instante sequer, se existe alguma gotinha de senso em toda aquela "espirituosa" sátira. Sobre tais idéias a "moda corrente" é não falar senão com o sorriso de sarcástico desprezo, e assim procedem A e B e C, e cada um deles tem receio de pensar a sério por um único minuto sobre a idéia escarnecida, pois que "sabe antecipadamente", que "além de insensatez nada mais ali se encontra", e receia que possa ser ele próprio incluído no "rol dos idiotas", se durante um minuto tratar seriamente de tal assunto. Os homens se pasmam de "como em nosso tempo de vida prática podem aparecer esses fantasistas insanos, e porque não são logo metidos nos manicômios!"

Mas passa algum tempo. Após longa série de pelejas e sofrimentos, os "bobos fantasistas" atingiram a meta. A humanidade está enriquecida com mais uma nova e importante aquisição, e dela tira variadas e multiformes vantagens. Então toda a situação se transforma. A nova cousa, já forte, parece a todos tão simples, tão "compreensível por si mesma", que ninguém sabe como se pode passar sem ela durante milênios. Quando os pósteros têm notícia da oposição que lhe moveram no nascimento os contemporâneos da idéia, absolutamente não querem crer, pensam que tudo aquilo é invenção dos historiadores para zombar das gerações passadas. "Seria possível", interrogam, "que o mundo de então fosse composto só de idiotas?" Seria possível que, enquanto uns atacavam os pioneiros com essas contestações extravagantes, os demais homens se conservassem em silêncio, e a primeira criança de cinco anos que os encontrasse não lhes dissesse: "Senhores, estais dizendo uma tolice terrível sem nenhuma base, cuja refutação está diante do vosso próprio nariz! Absolutamente incompreensível! Certamente os historiadores exageraram muito".

Leia-se a história do nascimento do cristianismo e de diversas grandes idéias nos domínios da moral, da filosofia e da ciência; leia-se a história do descobrimento da América, da adoção das estradas de ferro, etc. etc. Por toda a parte a mesma cousa. "É uma velha história mas está sempre nova."

A luz parece necessária a quem se acha longe, mas a quem se ache demasiado perto ela fere os olhos. Estes procuram extingui-la.

A idéia de Colombo, de que "devia existir um caminho ocidental para as Índias", parece-nos agora tão simples, tão natural, que não queremos crer tivessem existido pessoas que, sabendo já que a terra era um globo, pudessem duvidar de que a qualquer país se pudesse chegar não só do oriente, como do ocidente e de que este caminho pelo ocidente, não se achando ainda explorado, poderia apresentar a surpresa de interessantes terras desconhecidas. Quando lemos os ataques que então se faziam a Colombo, por exemplo: que ninguém havia navegado para o ocidente partindo da Europa, e que conseqüentemente isso não era possível, que Deus proibia fazê-lo, que, se os navios descessem, não poderiam subir de novo... etc. - involuntariamente nos interrogamos, como homens adultos podiam dizer tais disparates, diante dos quais uma criança de hoje enrubesceria! Entretanto, naquele tempo, essas contestações é que eram consideradas verdades que não comportavam sombra de dúvida, eram a opinião mais lógica de toda a gente de juízo: as idéias de Colombo eram consideradas infantilidade indigna de qualquer atenção.

Quando se demonstrou aos homens a força do vapor e a possibilidade de usá-la, parece que nenhum homem prudente poderia fazer-lhe qualquer objeção. E, contudo, quantos anos de peleja, de sofrimentos e de escárnio teve de suportar o inventor! E mesmo depois de atingida a meta, quando na Inglaterra já por três longos anos as locomotivas corriam prestando os mais relevantes serviços, no continente europeu homens instruídos e até corporações inteiras de eruditos, em vez de olhar e convencer-se simplesmente da verdade, escreviam ainda longos e profundos tratados para demonstrar que a construção de locomotivas era empresa infantil, que era impossível, que seria prejudicial, etc. Que seria isso? perguntamos nós hoje; seria uma epidemia de idiotice que afetara todos os homens? Existiram, realmente tais gerações? Sim, existiram tais gerações, e nós que hoje pasmados, efetivamente não somos melhores do que elas, e os nossos netos não serão melhores do que nós. Todos esses homens, com suas oposições que nos causam indignação pela insensatez não eram, entretanto, idiotas, embora hoje talvez assim nos pareçam. Toda a sua culpa consistia unicamente em que, pela inércia intelectual de todos nós, ou não queriam julgar os movimentos nascentes, limitando-se a um riso desopilante, ou o faziam com a convicção prévia de que a proposta era irrealizável, isto é, ajustavam a essa convicção todos os seus argumentos, sem lhes perceber a absoluta falta de base, ao passo que fechavam a sete chaves seus cérebros aos argumentos dos defensores; e assim esses argumentos que tentavam provar a possibilidade daquilo que "todos já sabiam ser irrealizável", deviam àqueles espíritos lerdos parecer tão infantis como hoje se nos afiguram suas contestações.

Ao rol das idéias que parecem insubstancial fantasia aos contemporâneos de seu nascimento, porém que aos pósteros parecem tão simples e naturais que mal podem conceber como tenha a humanidade vivido sem elas durante milênios, pertence também a idéia da adoção de uma língua comum para as comunicações entre diversos povos. Quando os vindouros lerem na história, que os homens, estes reis da terra, estes expoentes máximos da inteligência mundial, estes semideuses, durante longos milênios viveram uns ao lado dos outros sem se compreenderem reciprocamente, não quererão crer. "Para isso não se precisava de força alguma sobrenatural", dirão eles: "cada um desses homens já possuía uma coleção de sons convencionados por meio dos quais se compreendiam mui precisamente com os vizinhos mais próximos; como, então, não lhes vinha à cabeça combinar entre si para que uma dessas coleções de sons convencionados fosse adotada para a compreensão recíproca entre todos, do mesmo modo que para a maioria dos povos cultos já se haviam de longo tempo adotado uma coleção de medidas, um alfabeto, os sinais musicais, etc. sempre por meio de convenção!?"

Nossos descendentes sentir-se-ão indignados quando souberem, que os homens que se esforçavam pela adoção de uma língua comum eram pelos seus contemporâneos apontados com o dedo como maníacos, como bobos, indignos do nome de gente séria; que a respeito de tais homens qualquer néscio podia fazer humorismo nos jornais quanto quisesse, sem aparecer quem dissesse a esses levianos: "Podeis achar realizáveis ou irrealizáveis essas idéias, mas zombar sem as conhecer é vergonhoso, meus senhores!"

Nossos descendentes soltarão boas gargalhadas, quando souberem destes ingênuos discursos que muitos dos nossos contemporâneos fazem contra a idéia duma língua internacional em geral, e principalmente contra a de uma língua artificial. Do mesmo modo que nós, com um sorriso de compaixão, pensamos naqueles nossos remotos antepassados que tivessem talvez protestado contra a adoção de um alfabeto artificial, exclamando com ênfase de eruditos, mas sem prova alguma, que o meio de expressão de nossos pensamentos é um objeto orgânico natural, criado pela história (a escrita com o auxílio de desenhos hieroglíficos), e não pode "ser criado em um gabinete", - assim os pósteros zombarão dos nossos coetâneos, que, somente pelo fato absolutamente inexpressivo, de se haverem criado cegamente por si mesmas as línguas existentes no mundo declaram com autoridade que uma língua não pode ser criada artificialmente. "Até agora não houve, portanto não poderá haver!" - "Como poderei crer", dirá no século vindouro qualquer aluno de 10 anos de idade ao seu professor, "que tenham existido homens, que negassem a possibilidade de uma língua artificial, quando diante de seu próprio nariz essa língua existia, tinha já rica literatura e já preenchia na prática de modo excelente todas as funções que se podem exigir duma língua internacional, quando esses senhores, em vez de remoer o mesmo despautério teórico, precisavam somente de abrir os olhos e olhar! Será possível que homens adultos dissessem cousas sem sentido sobre uma imaginária diferença de órgãos vocais nos povos, quando qualquer criança via a cada passo membros de um povo falando perfeitamente a língua de outro povo?" E o mestre responderá: "Efetivamente é incrível, contudo assim era!"

De resto, atualmente, na questão de uma língua internacional a rotina e a inércia intelectual começam a pouco e pouco a ceder terreno diante da sadia prudência. Já de algum tempo aqui ou acolá em diversos jornais e revistas aparecem artigos cheios de aprovação pela idéia e pelos seus defensores. Mas esses artigos são tímidos, como se os autores receassem ficar expostos à desconsideração pública. Essas vozes tímidas perdem-se no bulhento coro dos gritadores e zombeteiros, de sorte que a esmagadora maioria do público, acostumada a ir para onde gritam mais alto e a considerar todo chacoteador uma pessoa sensata, a ver em cada agressor um bravo e em cada agredido um culpado, encara ainda a idéia de uma língua internacional como tola fantasia infantil. Convencer tal público não é pretensão nossa, pois nossas palavras se perderiam em vão. Só o tempo poderá convencê-lo. Amanhã construirão monumentos aos pioneiros da idéia com o mesmo entusiasmo com que hoje os enlameiam. Nossa palavra se dirige somente àqueles que, sob a influência de opiniões contraditórias hajam, entretanto, perdido a orientação, não sabem em que pé fiquem; desejariam crer, mas sentem-se ao mesmo tempo atormentados pela dúvida constante. Para estes analisaremos aqui, se efetivamente nós, os amigos da idéia de uma língua internacional, estamos trabalhando por alguma utopia, e se estamos ameaçados pelo perigo de que todos os nossos trabalhos se percam em vão, como pensam nossos opositores, ou se marchamos para um alvo perfeitamente definido, indubitável e infalivelmente certo.

Sabemos, prezados ouvintes, que os senhores estão a tratar com apreço somente os argumentos que vêem apoiados em muitas citações, repletos de nomes autorizados e entretecidos de expressões altissonantes, de frases pretenciosamente científicas. Prevenímo-los de que nada disso encontrarão os senhores em nosso arrazoado. Se os senhores acharem digno de atenção somente o que vem ligado a grandes nomes, leiam alguma obra sobre a língua internacional, e encontrarão longa série de gloriosos cientistas que trabalharam a favor da idéia de uma língua internacional. Aqui abandonaremos toda a carga supérflua e lhes falaremos somente em nome da lógica nua e crua. Não dêem atenção ao que dizem fulano ou sicrano, mas pensem por si mesmos. Se os nossos argumentos forem justos, aceitem-nos; se estiverem errados, desprezem-nos, mesmo que mil nomes brilhantes os apoiem.

Analisaremos sistematicamente as seguintes questões:

Se é necessária uma língua internacional.
Se em princípio ela é possível.
Se existe a esperança de que ela efetivamente venha a ser introduzida na prática.
Quando e de que modo isso será feito e qual será a língua adotada.
Se o nosso trabalho atual tem finalidade definida, ou se estamos ainda agindo às cegas e correndo risco de que nosso trabalho se perca inutilmente devendo os homens prudentes ainda conservar-se afastados de nós até que "a cousa se esclareça".

 

 

Revisado: 19 de Abril de 1998.
Eduardo Andrade Coelho
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